terça-feira, 17 de agosto de 2010

Home of the Blues

(Começa aqui)

-Filha, você é bonita demais para esse negócio.
-Não me chame assim. Corta o tesão.
-É assim que eu falo. Sou velho e nós tratamos as crianças como filhos- disse, acendendo outro cigarro.

Ela sorriu. Um sorriso doce, belo. Os lábios, grandes e cheios, eram de um marrom claro muito mais cativante que o vermelho artificial do batom que normalmente usava. Os olhos, castanhos e profundos, acompanharam o sorriso, mas fugiram, buscando sua testa. Os cabelos grisalhos que lhe brotavam nas têmporas. Ela pegou o cigarro e tragou.

-É carinhoso.
-Claro- o som de sua risada mexia com o coração dele, fazia-o sentir vontade de tocar algo em seu violão- mas, você não é velho. Tem o que, vinte e oito?
-Tenho trinta, senhorita. E é bom ter um pouco de respeito comigo, jovenzinha.

Ele não sorria. Nunca. Mas, seu tom era amável e menos dolorido que o costumeiro. Ela o fazia sentir-se perigosamente feliz, o que não era recomendável em sua profissão. O calor do corpo dela o excitou, sentiu seu peso sobre sua barriga e pernas quando ela girou por sobre o corpo dele. Ele passou os braços pelas costas dela e beijou-lhe os lábios.

-Garota, eu vivo do blues. Não me faça passar fome- Ele estava sorrindo, seu coração passava pelo que ele chamaria de amor adolescente- Mais fome.

Meia hora depois, ele se vestia ao pé da cama. Ela, já vestida, olhava para sua estante. Não era a quantidade de livros que a impressionava. Ela não era versada nestes assuntos. Não entendia de literatura ou de política, muito menos de teoria musical. E eram os principais assuntos. Tampouco entendia o que diziam as lombadas, quase todas em línguas estrangeiras.

Não, seus olhos não encontraram o que se interessar entre os tomos empoeirados, mas foram atraídos por uma estatueta. Era uma mulher esculpida em pedra sabão. Os braços pareciam apoiar a cabeça, formando um triângulo, os seios fartos, bem definidos. Muito detalhada. Era incrível.

Ele estava apaixonado, não tinha dúvidas. E ela, coincidentemente, admirava uma representação de Afrodite.

-É linda. Quem é?
-Afrodite. Deusa grega do amor. A prostituta do Olimpo. Divindade perigosa, de muitos amantes. Tome cuidado, dizem que ela é ciumenta.

Enquanto falava, ele a abraçou pelas costas, sentindo novamente seu calor no peito nu. O vestido dela era simples, de um preto desbotando. O contraste com sua pele muito branca lhe dava um tom fantasmagoricamente sensual.

-E é um falo- vendo a incompreensão no rosto da garota, traduziu- um pinto. Olhe a sombra.

A garota atentou para a sombra da estatueta que se projetava na estante e viu. Seu olhar estava maravilhado.

-É um símbolo- ele continuou- não sei direito o que significa, mas deve ser algo sobre unir o masculino e o feminino em nossas vidas. Sabe, uma metáfora da psicologia do Homem. De como nós nos completamos e de como há sempre dois lados, um positivo e um negativo em todas as coisas.

-Ah...-e, neste ah, continha-se o desinteresse que ela sentia pelas palavras- onde você comprou?
-Ganhei. De um amigo em Nova York. Há uns- tentou lembrar- alguns anos, eu tinha vinte e cinco. Ou quase, não me lembro ao certo. Disse que era grega mesmo. Fique com ela.

A garota segurava a estatueta, enquanto ele pegava uma camiseta preta do chão e a vestia. Outro cigarro pendia de sua boca, ainda apagado. Por pouco tempo. Seu quarto era uma bagunça. Os lençóis estavam jogados ao lado da cama. E havia livros, sem contar os da estante, espalhados por todo o lado. Um Bakunin caído no rumo de seu travesseiro chamou-lhe a atenção. Ele pegou o livro e viu as páginas amassadas.

Aquilo machucou. Seu descuido o irritava. Havia ainda um violão em algum lugar. Levantou umas roupas e achou-o submerso naquele mar de desordem. Colocou o livro sobre uma cômoda, em que havia um espelho onde se olhou.

-É sua.
-Não!
-Estou te dando. Uma deusa não pode se sentir bem num lugar como esse.
-Como assim? Olha, eu...não sei o que dizer, mas não posso aceitar. Não sei o que vai ser, mas não a quero. Ela é tão bonita e nunca se encaixaria comigo. Preciso ir.
-Você também é bonita. E não é pouco.

Ela o beijou, apressada. Ele tentou segurá-la mais um pouco, estender o momento. Mas não conseguiu. Ela lhe escapou. Deixou-o com o falo na mão, literalmente, e saiu. Ele a ouviu andando pelo corredor. E depois, ouviu o elevador chegando.

Ele acendeu o cigarro, enquanto admirava a estatueta. Nunca havia parado para pensar a respeito dela. Antes de mais nada, ela lhe era apenas o sentimento de alguém de quem gostara há muito tempo. Uma mulher a quem amara e que nunca mais veria. Às vezes, os símbolos têm o significado menos profundo. Nada de ambigüidade, mas simplesmente a lembrança. Debruçou-se na janela da sala, sua mente viajando a quilômetros dali, em um tempo passado que ainda lhe assombrava.

A garota saiu do elevador e dirigiu-se para a porta do hall do prédio, que se abriu com um estalo. Ela desceu as escadas, seus cabelos loiros erguidos pelo vento. Estava frio ali fora e ela desejou ter ficado no apartamento enfumaçado.
Seus pés tocaram a calçada no instante em que a estatueta se estilhaçava a seu lado.

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